12.11.09

A casa (ou Movimento No 3 de Bach)

Me pediram para sair, mas eu não saio. Já disse. A casa é minha. Percorro os espaços. Segundo a segundo, as tábuas choram o meu passo. Eu sofro. A cada rangido, uma lembrança. Não sei porque insistem em dizer que esse não é o meu lugar. Eu nasci aqui. Entre as paredes de adobe, grossas para manter os segredos onde devem ficar. Debaixo desse teto de treliça que hoje cai, sem pudor. Nasci com o cheiro do curral do outro lado da janela. Um fedor de bosta e aconchego, que me acompanhou sempre. Eu não tinha vergonha. No fundo, era bom. Trazia o conforto que não encontrei em outras partes. Nem nos amores, que jamais tive.

Voltei. Depois de tanto andar por canto algum. Foi difícil criar coragem. Temi que a casa não me quisesse mais. E se ela não me abrisse as portas? Pior: se não estivesse de pé? Não lembro como cheguei. Apenas vim. No escuro completo, um pico de luz. O menino me viu entrar. Contou para a mulher de xale verde. Ela não se importou. Parece ser do tipo que não se importa. Do tipo que tem que ser. O garoto me deixou em paz. Entendeu o quanto eu dependia da casa e ela de mim. Até que o cheiro de curral começou a incomodar a dona do xale. Como pode viver num lugar como esse e se deixar perturbar por uma merdica de nada?

Ontem, o homem do livro veio outra vez. É ele quem me diz para ir embora. Com palavras doces, um copo de água e orações. Dessa vez nem respondi. Não saio. Já disse. A casa é minha. Eu corro pelos corredores o quanto quiser. Corro tudo o que não corri quando podia. Não faço barulho, prometo. Quanto ao cheiro, não vai passar. Me seguiu na vida e não me abandonou na morte. Mas, a boa notícia: é setembro e os pés de jabuticaba começam a florir. Logo o pomar vai tomar a casa e ninguém mais vai perceber que eu estou aqui.




Escrevi esse conto ano passado... Aí vai...

Maria Dolores