23.11.09

A carta sobrevivente

Por Maria Dolores

Fotografias antigas, pediram na escola de esportes do meu filho. Para mostrar no telão na abertura das olimpíadas de fim de ano. Tirei a caixa de palha no canto esquerdo da prateleira de livros e revistas que fica sobre o computador, no escritório. Tirei com cuidado para não levantar poeira. A caixa estava embaixo de uma fita de vídeo cassete com a etiqueta em branco, um porta-retratos sem retrato, revistas antigas e dois livros do Sesc dos quais eu tinha me esquecido.

Fazia tempo que não abria a caixa e me assustei com quanto havia dentro. Eu gosto de fotografias – sou filha de fotógrafa, afinal. Mas não sou do tipo que prefere a imagem congelada à recordação, mesmo imprecisa. Gosto de fotografias - boas e suficientes. Prefiro uma única foto associada a uma lembrança sincera do que uma coleção de imagens semelhantes e uma recordação forjada. Forjada por não ter tido tempo de viver o momento, atrás da obsessão de aprisionar o instante em fragmentos que pouco serão vistos. Se vistos, esquecidos. O uso enlouquecido da imagem digital tornou-se um inimigo da história e da memória. As pessoas já não se preocupam tanto em registrar o momento dentro de si, porque tem a máquina e o celular para isso.

Abri a caixa e os retratos saltaram. Uma tarde de sol em cima da árvore. O menino pequeno, pintado de palhaço. A peruca black power. A banheira de espuma. A foto posada. A pose esculachada. A displicência, o choro, o susto, a gargalhada. O aro da bicicleta. O gato que já morreu. E um envelope branco pintado de bege cor de tempo. O cep ainda com cinco dígitos. A esferográfica de azul permanente. A data do carimbo postal, que não mente: 25MAR85. O destinatário, meu avô que, por um instante, voltou como se não tivesse ido. Embaixo, entre parênteses, o meu nome composto.

Era uma carta das muitas que meu pai me escrevia quando eu era pequena. Durante um tempo, as cartas foram constantes, nos papéis com bichinhos intermináveis e simpáticos. Até talvez terminar o bloco. Porque tudo termina um dia – ou se transforma. Eu ainda tenho algumas dessas cartas, não porque tenha guardado, pois era muito nova para saber o valor de uma lembrança. Alguém guardou para mim.
Mas, entre tantas cartas, nenhuma como esta - porque estava fechada. Uma carta sobrevivente. Uma mensagem que não desistiu de cumprir sua simples missão de se fazer chegar. Atravessou vinte e quatro anos, casas diferentes, caixas esquecidas, arranjos e desarranjos, até poder ser recebida, totalmente.

Não esperei. Não tinha porque esperar. Abri o envelope, com a ansiedade de quem acaba de receber a perspectiva de uma boa nova. Eram poucas linhas, com a caligrafia esforçada de médico com o objetivo claro de facilitar a leitura. Falava sobre o fim de semana que havia passado em Três Pontas, da brincadeira com minhas amiguinhas na piscina (quem seriam elas?), da minha aula de vôlei (onde?). Perguntava se o dedo da tia Bete havia melhorado, torcia para eu me livrar dos piolhos e dizia, por fim, ter esperança de me ver na Semana Santa, outra vez. Do seu pai, Rodrigo.

Dobrei a carta, coloquei no envelope. Dei uma bela risada, pensando nos piolhos, no método curativo peculiar da minha mãe de me colocar para dormir com touca de querosene. De repente, eu era a menina que um dia fui e que, descobri, continuo sendo. Foi como se a distância entre o aqui e o ontem tivesse deixado de existir. Então pensei: tanto faz se passou um dia ou uma década, a distância que nos separa do passado é uma só, medida pela saudade ou pela importância de cada momento na nossa vida. E, mais, não é preciso deixar de lado o que se foi à medida que caminhamos para frente. Podemos caminhar por inteiro.

Talvez a carta tivesse esperado tanto tempo para eu me dar conta disso. Porque, certamente, não o faria aos sete anos. Para me mostrar que nunca deixamos de ser quem somos e que congelar os momentos por datas é um esforço inútil, quando se fala de sentimento. Ter consciência disso pode ajudar a viver melhor o presente, lamentar por “demenos”, viver por demais. Escolhi as fotos do meu filho e voltei a carta para a caixa de fotografias. Por alguma razão estava lá. Pela mesma razão, acredito que deva ficar.

Crônica publicada no Correio Trespontano, dia 21/11/2009.