22.6.10

Gabo, por Cartagena

Ao atravessar o portão de entrada de Cartagena, disse a mulher a Garcia Márquez: aqui tudo é distinto! Era 1948 e o aspirante a escritor havia transferido seus estudos de Direito para a cidade, depois de uma crise política em Bogotá. Gabo, como é chamado pelos amigos, não precisou mais que alguns instantes ali para perceber a força daquela frase. Não só pela arquitetura colonial ou a impressionante muralha de corais. A grande diferença estava - e está – no limite vulnerável que transita entre fantasia e a realidade.

Fundada em 1533 pelo espanhol Pedro Heredia, Cartagena das Índias foi a principal rota de ouro, prata e pedras preciosas das Américas no início da colonização. Situada na costa caribenha da Colômbia, durante dois séculos foi invadida sistematicamente por piratas do Caribe, França e Inglaterra. Um dos piores ataques aconteceu em 1586, quando o pirata inglês Francis Drake e seus 23 navios saquearam e destruíram parte do centro histórico. Foi o estopim para a Espanha iniciar a construção do maior conjunto arquitetônico militar da América colonial. Os fortes e a muralha, que contorna toda a cidade, foram concluídos em meados do século XVIII e Cartagena nunca mais foi invadida. Pelo menos, por piratas.

Quanto aos outros invasores, trabalhadores ou turistas, nunca pararam de chegar. Gabo foi um deles. Para sobreviver conseguiu um emprego no recém fundado El Universal. Até então, sua única ambição era ser escritor, nunca tinha pensado em seguir a carreira de jornalista. Quando deu por si, não havia como voltar atrás, ou melhor, já não queria. Descobriu a literatura no jornalismo, o jornalismo na literatura e assim, durante quase três anos, viveu Cartagena. Impregnou-se tanto dela que é possível reconhecer em cada esquina um personagem ou uma cena presentes em alguns de seus livros, escritos ou por escrever.

Em uma dessas esquinas está a inscrição em azulejos azuis e brancos: Calle San Juan de Dios. Trata-se de uma rua pequena, entre casarões coloniais e a lateral da Igreja de San Pedro Claver. No meio do quarteirão está um sobrado amarelo mostarda. No canto de uma das suas três portas, a indicação: “Fundación Nuevo Periodismo”. É ali a fundação-escola criada por Garcia Márquez em 1995, com o objetivo de fomentar o jornalismo na América Latina. É ali também, no quarto andar de escadas em caracol onde trabalha Jaime Garcia Márquez, seu irmão.

Nem muito alto, nem muito baixo, nem muito gordo, nem muito magro, Jaime é um tipo surpreendente. Quase não fala em público e quando o faz as palavras saem pontilhadas. Mas basta quebrar a barreira da formalidade para se revelar um falante insuperável, um contador de histórias nato. De pele morena e cabelos brancos muito bem penteados, está sempre com a roupa impecável. A primeira impressão e a última é de que tudo nele é exato. No punho esquerdo, contrastando com o estilo clássico, está um relógio de plástico preto. Jaime confere as horas, são cinco da tarde.

Depois de um calor escaldante, o ar começa a se dissolver e a possibilidade de caminhar com maior liberdade pelas ruas de Cartagena foi a razão por ele ter escolhido o fim do dia para o início do nosso encontro. Vamos percorrer as ruas da cidade atrás dos vestígios de Gabriel Garcia Márquez, ou Gabito, como é carinhosamente apelidado pela família. Essa é a terceira vez que Jaime assume a função de guia pelo que ele chama de “recorrido”, embora pareça tê-lo feito desde sempre. A primeira foi a pedido de uma ministra de governo, a segunda de um escritor conceituado. Agora, vamos nós.

Começamos a poucos metros da sede da fundação, em outro sobrado. A construção de um cinza abandonado e com as portas fechadas sustenta o letreiro “Loteria de Bolivar”. Em cima, está a sacada vazia, antes frequentada por flores e figuras como Manuel Clemente Zabala, jornalista, erudito e diretor de jornal. Ali funcionava o El Unviersal, onde o primogênito de Eligio Garcia e Luísa Márquez iniciou a carreira. Atualmente, o semanário ocupa uma sede moderna fora da muralha. Uma construção de paredes retas, sem cores. Impessoal e imparcial como tantas outras pelo mundo, nas quais se pratica o jornalismo.

Andamos alguns metros mais e chegamos à praça de Santa Teresa, onde há o barracão que serviu de hospital e socorreu o sobrevivente de um naufrágio em 1955. Na época, o sobrevivente contou a sua história a Gabriel. A história virou uma série de reportagens que depois foram publicadas no livro “O relato de um náufrago”. Do outro lado da praça, por um dos portões da muralha, está o mar. “Meu pai me trouxe aqui para eu conhecer o mar e eu me assustei porque não dava para ver do outro lado”, recorda Jaime. Eligio Garcia disse ao filho que o rei da Espanha subia em um banco para tentar enxergar a muralha. Se ele acreditou, foi um golpe certeiro da infância.

Desde seus tempos de juventude como professor de física e, mais tarde, engenheiro civil, Jaime nunca se deixou levar pelo que não pudesse explicar. Uma noite, ele e Gabito passavam pela rua Gastelbondo, quando viram uma mulher de vestido azul e um cachorro. “Nós paramos e olhamos para trás, eles haviam desaparecido; para mim, que não acredito em mortos, foi terrível”. Anos depois Jaime encontrou a explicação: a mulher morava ali e, provavelmente, entrou em casa tão rápido a ponto de não terem percebido. Ao contar vitorioso a descoberta para o irmão, levou a bronca que levaria inúmeras outras vezes: “Não busque a realidade, porque ela sempre há de matar o conto”.

Partimos para a rua Nossa Senhora do Landrinal, esquina com rua da Amargura. Da metade do quarteirão para frente, está um casarão branco de dois andares e muitas janelas verdes. “Essa é a Casa das Janelas”, diz Jaime. “A casa do Florentino Ariza?”. Sim, é a casa de Florentino, um dos personagens apaixonantes de “O amor nos tempos do cólera”. Quando Garcia Márquez estava escrevendo o romance, passou uma temporada em Cartagena. Entrevistou seus pais sobre seus amores contrariados e perambulou atrás de cenários para habitar seus personagens e suas aventuras. O companheiro do escritor nessa jornada foi o irmão engenheiro.

Durante dias os dois percorreram a cidade. Sentaram nas suas praças, beberam nos seus bares, pisaram as pedras das suas ruas e lembraram muitas histórias. Foi numa dessas noites que a dupla se deparou com um grosso tapete de laranjas cobrindo toda a rua do Santíssimo. Estavam de carro. Gabito, na direção, não teve tempo de desacelerar e passaram por cima do chão de frutas, entre solavancos e sumos. Era de madrugada e antes que Jaime abrisse a boca, veio o recado: “Conte você, porque se conto eu, dirão que estou inventado”. Inconformado, Jaime foi atrás e descobriu a origem da anedota: o descarte impróprio de um supermercado.

Por uma das janelas verdes soa a Ave Maria de Gounod. Embora o passeio pareça ter começado há cinco minutos, o relógio marca seis horas. Deixamos a rua do Landrinal e seguimos para o famoso Portal dos Doces. No caminho, passamos pela praça Bolívar. Todos os bancos estão ocupados, aqui as pessoas parecem encontrar fôlego para sentar. Há mesas de xadrez e um pequeno tumulto de velhos ao redor delas. Na esquina que dá para o trio Catedral, Palácio da Moeda e o antigo Palácio da Inquisição, Federico, o Historiador, acaba de chegar.

Há vinte e cinco anos passa o fim do dia ali, contanto histórias aos turistas em troca de moedas. Se não há moedas, nem turistas, conta aos colegas e às crianças, com seu corpo esguio comandado por mãos enormes. É simpático, apesar de conservar um ar sombrio. Pergunto se conhece Francisco, o Homem, personagem de “Cem anos de solidão”. Federico responde que não. Mas, conhece o autor. “Gabriel Garcia Márquez é uma lenda em Cartagena, é um mito”, diz aproveitando um grupo de turistas para continuar a história.
Seguimos para o Portal dos Doces, que fica em frente à Torre do Relógio, na entrada principal da cidade. Entre os dois monumentos há outra das tantas praças. “Foi ali onde Firmina Daza, que antes se chamou Josefa Cárcamo, descobriu não amar mais Florentino Ariza. E foi nesta praça que ele bailou por toda uma noite de carnaval com uma louca”. Enquanto Jaime aponta os lugares e conta as passagens do livro, é possível ver as cenas. O barulho silencia a conversação e, por um instante, o ar que respiramos vem de outro tempo, daquele que nunca existiu senão nas páginas de um livro.

O dia termina de escurecer, as luzes se acendem e pintam de dourado a muralha, a torre e tudo o mais erguido sobre as pedras de coral. É hora de apertar o passo. Visitamos outras praças e casas até chegarmos ao Hotel Santa Clara, antigo monastério, prisão voluntária das mulheres de fé. Há cerca de dez anos, quando a construção foi restaurada para abrigar o hotel, decidiram abrir as criptas no subsolo. Em uma delas havia um esqueleto de menina com longos cabelos. Um prato cheio para a imaginação cartageneira. Para alguns, a pobre foi enterrada viva, outros dizem ter morrido de amor, e há quem jure de pé junto ter sido possuída pelo demo. Gabriel Garcia Márquez fez a sua versão, escreveu “Do amor e outros demônios”.

Já são quase nove da noite e Jaime convida para uma pausa no bar do hotel, justamente sobre as criptas. Depois de uma década de visitas, lendas e histórias, os túmulos vazios perderam o privilégio de abrigar apenas os próprios fantasmas e isso dá um pouco de medo. Yésseda Gimenez tem vinte anos e há três trabalha no bar. Diz não se incomodar com as criptas. De qualquer forma, se recusa a ficar ali sozinha e em hipótese alguma vai à capela ao lado. Lá, estão lápides que ainda guardam os seus mortos.

Enquanto tomamos o suave “mojito” – uma bebida cubana à base de rum e hortelã - Jaime fala de como é ser irmão de um Nobel da literatura. “Preferia ser irmão de gerente de banco”, brinca. Para ele e os outros irmãos, os personagens de Gabito são uma fusão de vários conhecidos. Aliás, de uns anos para cá, esta se tornou a grande diversão da família: descobrir, a cada livro, quem está na história, quais foram as inspirações, o que há deles e do próprio Gabo nas entrelinhas. “Para mim, ‘Memórias de mis putas tristes’ é sua verdadeira autobiografia, é uma ode ao amor. Gabito é um grande conhecedor da alma humana”.

Terminamos os “mojitos” e seguimos para o final do percurso, ao menos para mim. Jaime Garcia Márquez aponta uma casa vermelho-terra na rua do Curato. É a casa de seu irmão. Todas as palavras que haviam sido guardadas para este momento se perdem diante do espanto. Aonde está o sobrado? Não há telhados, não há sacadas floridas. Apenas uma porção de blocos geométricos que se espalham pelos dois lados de uma esquina. As venezianas de correr estão quase todas fechadas. O único movimento é o balanço de uma palmeira, que se esconde atrás de um muro tão assustador quanto a própria muralha. Um segurança hiper-armado ronda a construção.

Sim, é a casa de Gabo, ou melhor, Gabriel Garcia Márquez, porque a imponência que a separa de toda a cidade não permite maior aproximação. Não há o que dizer, tão pouco os ânimos estão para pensar. Jaime se desculpa por não poder mostrá-la por dentro. Nem precisa. Seguimos para “La bodeguita del medio”, faz questão de terminar o passeio no bar onde ele e Gabito encerraram a sua peregrinação. Mas já não importa, a não ser pela sua companhia. Ele continua a contar algumas histórias, mas só consigo ouvir a frase dita em certo momento do caminho: “Não busque a realidade, porque ela sempre há de matar o conto”.

(Texto publicado no Correio Trespontano, em 2005)