27.1.09

Barack é bom. Mas o bom mesmo é o Milton Nascimento

Claro, gostei dessa crônica do Arnaldo Bloch... Mas, é Bituca, e não Pituca...


Oba-Obama

Barack é bom. Mas bom mesmo é o Milton Nascimento

Crônica publicada no Segundo Caderno do jornal O Globo, em 24/01

Por Arnaldo Bloch

Paris, Paris, je t’aime/Mas eu gosto
muito mais do Leme”, soaram os ver-
sos da marchinha de Alberto Ribeiro
e Alcyr Pires Vermelho, no réveillon
que passei na casa de outro Pires, esse amigo
meu, que por sinal está em Paris. Ainda sob im-
pacto da megaposse de Obama, com seus bai-
les, suas conclamações, suas orações, seus vio-
linos embalando tanta esperança na nova tra-
vessia, que oxalá se realize, topei com Sarah
Vaughan no CD-player do carro, interpretando
“Travessia” em inglês, improvisando a mil no
compasso acelerado da versão, improviso cer-
to, sem nota na trave, no curso mesmo da me-
lodia, só uns voos curtos, de diva de jazz.
Milton aparece só em dois versos, pra pon-
tuar, pra dizer “olha eu aqui”, Pituca dando pi-
taco na praia da Sarah. Depois, na sequência
da coletânea (a clássica “Brazilian Horizons”),
veio Joe Pass solando na bateria de Paulinho
da Costa. Antes, passava o “Once I loved”, To-
ninho Horta com Billy Higgins e Gary Peaco-
ck, cheguei a verter umas lágrimas com o “Mi-
nas train” que fecha o CD. Na posse de Oba-
ma, aliás, não chorei. Não cheguei a ficar se-
quer emocionado. Fiquei em outras ocasiões,
prévias à campanha, mas a obamania trouxe
tantos meses de alegria que daqui a pouco
corre o risco de virar alergia.

Provavelmente vou chorar de novo quando
Barack aderir ao tratado de Kioto ou quando
derrubar o Patriot Act com uma canetada. Pe-
los atos do primeiro dia de fato, tá com jeito
de chegar lá, devagar-devagarinho pra não as-
sombrar os falcões adormecidos, inebriados,
doidões de Obama na cabeça.
Ou quando vier ao Brasil. Aí vou chorar.
Obama sabe sambar? Oba-Obama em Copaca-
bana? Pela atuação nos bailes da posse, pas-
sista ele não é. É mais Harvard que bebop,
mais MBA que olê-olá. Como será o encontro
com Lula, outro que não é de samba? Formal?
Lula morria de amores era por Bush, aquele
que não sabia se havia negros no Brasil. Isso
Obama não vai perguntar a Lula, que vai que-
rer saber o quanto ele está mesmo compro-
metido com fazer florescer a fazenda de cá
atendendo à justiça distribuitiva de lá...

Voltando à posse, achei-a, com toda a sin-
ceridade, meio chata, no maior respeito ao
belo discurso, às belas diretrizes, ao medley
do John Wlliams, ao sarau de poesia. Muito
formal. O povo estava feliz, mas o frio deve ter
encolhido um pouco os ossos. Faltaram hu-
mor, graça, riso, jazz, soul. O único momento
de real descontração, ironicamente, veio da
bênção do pastor Joseph Lowery, que parti-
cipou da luta pelos direitos civis dos negros
durante a época da segregação. Com sua voz
melodiosa, lá pelo fim da evocação ele disse,
dirigindo-se a’O que está nas alturas: “Help us
work for that day when black will not be asked
to get back, when brown can stick around, when
yellow will be mellow, when the red man can
get ahead, man, and when white will embrace
what is right.” Mandou bem, o reverendo.
Arrancou gargalhadas comovidas com seus
versos multiculturais, dificílimos de traduzir
com alguma graça. Até fiz um concurso no
blog (oglobo.com.br/blogs/arnaldo) e recebi
numerosas contribuições passadistas e con-
temporâneas. Por exemplo: ao rimar yellow
com mellow, o pastor fez alusão à canção de
“Donovan”. Que, como lembrou-me a leitora
Telma Muniz, tinha a ver com “fumar casca de
banana para ter um barato”. “Stick around”,
acrescenta Telma, além de ter o caráter de se
“estar na área”, é também gíria para chamar
pra briga (“stick around and you’ll see”).
A própria Telma mandou uma possível tra-
dução livre: “Ajude-nos a trabalhar por aquele
dia/quando o preto não for mandado ao gue-
to/quando o mulato persistir de fato/quando
o amarelo for singelo/ quando o pele-verme-
lha com outros se assemelha/e quando o
branco abraçar o certo e franco.” A Telma só
esqueceu que por “brown” os americanos cos-
tumam designar os latinos, e não os mestiços.
A isso esteve atento o leitor Érico Calixto,
que, no referido verso, cravou “que os latinos
sejam bem-vindos”, mas sem rima.
A melhor tradução, contudo, foi mesmo da
leitora Noga Lubicz Sclar: “Nos ampare na la-
buta pelo dia vindouro em que o negro escape
ao degredo, o moreno tenha trato ameno, o
amarelo seja igualmente belo, o vermelho
prossiga parelho, e o branco seja sempre fran-
co.” O pessoal do grupo Sete Novos tentou
privilegiar o humor e acertou algumas no filó.
Resumo: “Chegue o dia em que o preto não se-
rá o preso, o pardo não será o pato e o branco
pegará no tranco”.

O reverendo, assim como o Milton Nasci
mento in Sarah, roubou a minha Semana Oba-
ma, que foi alegre mas também triste. Triste o
desfile, o carro imune a bazooca indevassá-
vel, o popularíssimo primeiro presidente ne-
gro selado, invisível, num cofre móvel. Outra
alternativa não haveria (a não ser um aquário
blindado, redoma transparente, em que Oba-
ma passasse em exibição), sinal de que o
mundo, ao contrário do que parece, pouco
avançou. Já a música do Milton continua à
frente do fim dos tempos.