Me parece que era uma sexta-feira. Mas bem podia ter sido segunda, quinta. Nem sábado, nem domingo, pois era dia útil, de labuta. O que importa, na verdade, é que era de manhã, antes das oito, provavelmente, horário quase certo da primeira refeição. Sempre faziam o desjejum na mesa redonda da cozinha, de tábuas irregulares, propícias ao desequilíbrio de um copo qualquer. Nesse dia, porém, estavam em uma das pontas da mesa grande da copa. Cheguei pela garagem, para tomar o leite quente com café preto, pão, manteiga e queijo assado. Havia um homem no alto da árvore, outro embaixo, cortando aqui, ali. “O que estão fazendo?”, perguntei. “Estão podando”, respondeu o avô. “Estão cortando a árvore”, retrucou, direta e reta, a avó.
Não lembro se falei alguma coisa, já não sei quantos anos tinha, talvez quatorze, treze... Faz tão pouco tempo e me assusta falhar assim a memória... Tantos segundos passados e o que antes lembrava – ou reinventava - por completo, mostra-se agora em fragmentos. Outro dia me esqueci onde estava e o que fazia... Branco. Tarefas em excesso, pensamentos em demasia... O fato é que, lendo a página de um livro que falava sobre o cheiro do pão, lembrei de imediato do cheiro do café da manhã na casa da avó Norma e do avô Ismael. Um cheiro quente, acompanhado de aconchego, um porto seguro, iluminado, tão claro como devem ser todas as manhãs. Lembrei, especialmente, daquele café, e da árvore. Não sei se disse algo, mas chorei muito. As lágrimas, como de costume, saltaram-me aos olhos, o coração partiu e derramei aquele pranto sincero, gigante, que ocupa cada canto do corpo e nos faz sentir muito além da tristeza, um vazio preenchido gota a gota, um alívio seguinte por ter chorado a dor.
A estrutura da casa estava comprometida, dizia o avô, amparado pela rachadura na parede. Mas, que importa cair a casa? Que importa manter de pé as paredes e a segurança da família? Nada importa quando a árvore se vai, galho a galho, lá do alto, ao som da moto-serra. Eu amei a árvore. Ela cresceu comigo, cresceu mais que eu. Foi um presente da avó de lá para a avó de cá. Nos primeiros anos, e até nos últimos, procurei, insaciável, as fadas entre as folhas pequeninas, e tentei ser uma delas. Subi no telhado para ver se alcançava o topo, passava as horas de ventania e chuva no quartinho para dentro do quarto deles, vendo pela janela a árvore balançar de um lado para o outro e se inclinar, majestosa, sobre a casa, reverenciando a morada e tudo o que havia nela. E então, adeus. Chorei, minha avó chorou ou, pelo menos, pensei tê-la visto chorar, quieta. Meu avô... Não vi lágrimas nos seus olhos, a minha impressão na época foi de seu ar vitorioso, mas sei que essa era a visão da pessoa ofendida, magoada.
Hoje, lembro da despedida da árvore sem mágoa, com saudade... Saudade de todas as manhãs da minha vida que meu avô Ismael preparou o café da manhã para mim, o leite quente, sempre a tempo, o pão fresco, a mesa posta, o queijo cortado milimetricamente exato. Hoje, lembrei da árvore, do meu avô e das pessoas queridas que se vão, das perdas antigas, das perdas recentes, da falta que fará agora a esse mundo outra avó, a avó do Felipe, a avó Carmitinha... Hoje, lembrei da árvore, de uma manhã e um pão, um instante preso no tempo e que caminha com ele, um grama da minha história e dos que fazem parte dela, que se vão, sem nunca irem de verdade. Sim, hoje lembrei da árvore. Amanhã quero lembrar também. Deus permita que eu não perca nunca a memória. Não deve existir pior solidão.
Em memória ao avô Ismael, ao tio Cipriano, à avó Carmitinha e a todos que deixam a saudade no coração...
Não lembro se falei alguma coisa, já não sei quantos anos tinha, talvez quatorze, treze... Faz tão pouco tempo e me assusta falhar assim a memória... Tantos segundos passados e o que antes lembrava – ou reinventava - por completo, mostra-se agora em fragmentos. Outro dia me esqueci onde estava e o que fazia... Branco. Tarefas em excesso, pensamentos em demasia... O fato é que, lendo a página de um livro que falava sobre o cheiro do pão, lembrei de imediato do cheiro do café da manhã na casa da avó Norma e do avô Ismael. Um cheiro quente, acompanhado de aconchego, um porto seguro, iluminado, tão claro como devem ser todas as manhãs. Lembrei, especialmente, daquele café, e da árvore. Não sei se disse algo, mas chorei muito. As lágrimas, como de costume, saltaram-me aos olhos, o coração partiu e derramei aquele pranto sincero, gigante, que ocupa cada canto do corpo e nos faz sentir muito além da tristeza, um vazio preenchido gota a gota, um alívio seguinte por ter chorado a dor.
A estrutura da casa estava comprometida, dizia o avô, amparado pela rachadura na parede. Mas, que importa cair a casa? Que importa manter de pé as paredes e a segurança da família? Nada importa quando a árvore se vai, galho a galho, lá do alto, ao som da moto-serra. Eu amei a árvore. Ela cresceu comigo, cresceu mais que eu. Foi um presente da avó de lá para a avó de cá. Nos primeiros anos, e até nos últimos, procurei, insaciável, as fadas entre as folhas pequeninas, e tentei ser uma delas. Subi no telhado para ver se alcançava o topo, passava as horas de ventania e chuva no quartinho para dentro do quarto deles, vendo pela janela a árvore balançar de um lado para o outro e se inclinar, majestosa, sobre a casa, reverenciando a morada e tudo o que havia nela. E então, adeus. Chorei, minha avó chorou ou, pelo menos, pensei tê-la visto chorar, quieta. Meu avô... Não vi lágrimas nos seus olhos, a minha impressão na época foi de seu ar vitorioso, mas sei que essa era a visão da pessoa ofendida, magoada.
Hoje, lembro da despedida da árvore sem mágoa, com saudade... Saudade de todas as manhãs da minha vida que meu avô Ismael preparou o café da manhã para mim, o leite quente, sempre a tempo, o pão fresco, a mesa posta, o queijo cortado milimetricamente exato. Hoje, lembrei da árvore, do meu avô e das pessoas queridas que se vão, das perdas antigas, das perdas recentes, da falta que fará agora a esse mundo outra avó, a avó do Felipe, a avó Carmitinha... Hoje, lembrei da árvore, de uma manhã e um pão, um instante preso no tempo e que caminha com ele, um grama da minha história e dos que fazem parte dela, que se vão, sem nunca irem de verdade. Sim, hoje lembrei da árvore. Amanhã quero lembrar também. Deus permita que eu não perca nunca a memória. Não deve existir pior solidão.
Em memória ao avô Ismael, ao tio Cipriano, à avó Carmitinha e a todos que deixam a saudade no coração...
(Crônica publicada no Correio Trespontano em 12/04/2008)