Fernanda Ribeiro dos Santos
Idade atual: 24 anos
Desapareceu em 02/02/1999
Santos – SP, com 15 anos
Ana Karoline Mascarenhas
Idade atual: 12 anos
Desapareceu em 10/02/2000
Vitória – ES, com 8 anos
Daniele Brito Nunes
Idade atual: 23 anos
Desapareceu em 19/01/2000
São Paulo – SP, com 17 anos
Matheus Campos Souza
Idade atual: 5 anos
Desapareceu em 02/03/2004
Maceió – AL, com 3 anos
Minha bolsa estava uma bagunça, depois de quatro viagens seguidas e centenas de vezes aberta e fechada. O escritório também estava intransitável, então, mais por sobrevivência que por gosto reservei a tarde para arrumá-los. Quase toda papelada dentro da bolsa vermelha foi para o lixo, recibos, panfletos, anotações ultrapassadas. Mas houve quatro pequenos pedaços de papéis que não tive coragem de atirar fora. Pensei, cheguei a descartar um, mas o recuperei a tempo e deixei os quatro na minha mesa, sem saber o que fazer. Sentindo uma culpa enorme porque me vi ao ponto de não dar a mínima e seguir como se nada tivesse acontecido, como provavelmente segue a grande maioria dos milhares de motoristas que passam todos os dias pelos pedágios da rodovia.
E mesmo continuando a achar que não posso fazer nada, só o fato de manter os quatro papéis comigo por um tempo a mais que alguns segundos me faz sentir melhor, como se isso pudesse ajudar a encontrá-los. São quatro recibos de pedágio da Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. No verso do valor pago, a esperança de uma família: a foto e os dados do ente querido, com a data e o local em que desapareceu e nunca mais voltou. Fernanda, Ana Karoline, Daniele, Matheus... E os outros que devo ter perdido dentro do carro, dentro da minha própria desatenção entre tantas idas e vindas nesse chão de asfalto.
Olhei com cuidado para as fotografias e tentei decorar cada rosto, para o caso de cruzar com algum deles no caminho, e devolvê-los à vida que lhes foi roubada. Mas as pessoas são tão iguais, que é preciso talento e vocação para distinguir uma entre milhões. Mesmo os conhecidos tenho dificuldade de identificar. Várias vezes, quando ajudava minha mãe a separar fotos de debutantes, eu a enlouquecia quando de 16 meninas havia apenas 14 montinhos de fotografias. Juntava duas ou até três num mesmo montinho e continuo achando que minha mãe se enganou nas contas, porque algumas não podiam ser duas. O fato é que distinguir alguém pelos traços pode ser uma tarefa um quanto complicada. Só conhecendo mesmo a pessoa é que dá para saber quem é quem nesse mundo de Deus.
Por isso sei que será quase irreal reconhecer os desaparecidos das fotos na rua, mas mesmo assim não posso descartar os papéis sem prestar atenção, sem, pelo menos, rezar por eles e suas famílias. Quanto estive na Colômbia, que enfrenta há décadas um problema grave de seqüestros por parte do narcotráfico, ouvi a seguinte frase: Ä família que tem um parente seqüestrado está ela também seqüestrada”. E dói saber que na maioria das vezes não se consegue fazer nada, a não ser continuar a existência com um fio de esperança e uma montanha de dúvidas. Fernanda, Ana Karoline, Daniele, Matheus... Orai por eles. Amém.
(Crônica publicada no Correio Trespontano em 27/10/2007)