- Quer parar por hoje? – pergunto
- Acho que sim. – responde o entrevistado, e escuto o clique indicando que a gravação daquele dia acabou ali.
Vou parar também. Faltam três minutos para as dez da noite. Estou terminando a transcrição de uma entrevista e, por mais divertida que tenha sido, a essa altura do campeonato estou cansada, pensando que preciso colocar meu filho para dormir, pensando no quanto falta para o fim da fita. Teria que entregar a transcrição hoje, mas não vou conseguir. Ou vou? A mesa com o computador fica encostada na janela, por onde entra a luz do dia e, agora, o ar fresco da noite conduzido pelo brilho das luzes de São Paulo. Nenhum editor de revisa vai passar a madrugada lendo trabalhos que não serão impressos no dia seguinte... Melhor ir deitar. E então, escuto um barulho alto, forte.
Parece a explosão do cano de descarga amplificada. Mas não é, e eu sei, embora demore uns 15 segundos para assimilar. Até ouvir o segundo tiro. Um grito, outro grito. 5 segundos, mais tiros. Corro para o quarto onde está meu filho, deitado na cama, vendo TV. Deito com ele, o abraço. Um, dois, três, quatro, cinco tiros seguidos e, de repente, me vejo falando ao pequeno algo que nunca sonhei em dizer, uma regra fundamental para a sobrevivência:
- Tá ouvindo esse barulho? É tiro. Quando você escutar isso deita no chão e espera passar.
Moro no décimo quarto andar de um prédio que não tem prédios dos lados e dá, por um momento, a sensação de liberdade, mesmo com as grades nas janelas. Nos poucos mais de trinta segundos entre o primeiro e o último tiros eu quis ter prédios vizinhos, prédios de concreto, com muitas paredes, portas e obstáculos. Obstáculos que pudessem cercar o espaço livre entre a esquina da rua de baixo, onde aconteceu o tiroteio, e as minhas janelas. Décimo quarto andar é alto, mas não sei quanto uma bala é capaz de percorrer. Uma, duas, três, quatro, cinco. Felipe estava tocando piano na sala, em frente à maior janela. Entre as notas musicais, os tiros cortando o compasso. A curiosidade foi grande, mas também saiu do campo aberto, foi para o quarto.
Trinta segundos, quarenta, um minuto. Um instante e a vida pode escapar. O que se faz em um minuto quando não se tem a certeza, de repente, de que aquele não será o último? É a terceira vez que sinto essa dúvida, o coração disparar porque a vida é mais frágil do que supunha. A primeira vez foi num acidente de carro, há quase dez anos. Deve ter durado menos de dez segundos, tudo tão rápido, tão forte, a derrapagem, o barranco, o carro virando de cabeça para baixo como num brinquedo de parque de diversão. Outro dia, no metrô, uma perseguição policial como nos filmes de ação americanos, e o bandido entrou no meu vagão, com o revolver em punho. Ninguém se moveu, fiquei quieta, olhando para baixo. Um homem, uma arma na mão. Nunca se sabe. Mais uma vez a dúvida, ou melhor, a percepção da incerteza, de que talvez a história termine ali.
Eu sempre pensei que a vida passasse como um filme, um trailer, nos últimos segundos de uma existência. Por bem não foram meus últimos, pois estou aqui, mas poderiam ter sido e eu teria frustrado meu instante derradeiro porque minha vida não passou como um filme. Não lembrei das pessoas queridas, não senti um aperto no peito, só uma pergunta, no ar: E agora? Agora, seja o que Deus quiser – era a resposta... E no mesmo instante, sem perceber, acompanhando a incerteza, a ansiedade e o medo, uma sensação de paz. Paz por não ter no coração nenhum pesar de não ter feito algo que deveria, de não ter pedido desculpas, não ter perdoado ou não ter pedido encarecidamente perdão. Foi então que eu pensei que a maior conquista da vida é passar por ela desfazendo os nós que se atam dia após dia. Pensei nos pais que brigam com seus filhos, nos filhos que se esquecem dos pais, nos irmãos que deixam de se falar, nos melhores amigos que rompem numa mesa de bar, na palavra dita na hora da raiva e cultivada pelo resto dos dias, em tudo o que se falou sem ser preciso, em tudo o que ficou sem ser dito e, por fim, em como a rotina e a comodidade aumentam ainda mais os nós e a distância entre pessoas queridas que se perdem, pensando, talvez, em colocar tudo em pratos limpos amanhã, quem sabe.
E, então, uma pista molhada, um carro girando, um tiro, dois, três. Dez segundos e lá se foram todas as oportunidades de dar o último abraço, de pegar o telefone e dizer que sente muito, olá, como vai, quando tempo? De entrar em um ônibus, seguir estrada e saltar numa rodoviária estranha, num lugar estranho, só para dizer, apesar de tudo, amo você, ou simplesmente atravessar a rua, bater na porta de onde jurou nunca mais entrar, e oferecer a mão. Deixar o coração tranqüilo, porque nunca se sabe o que pode acontecer nos próximos segundos.
Quando o tiroteio terminou, fomos para a sala. Da janela dava para ver a esquina, a polícia, a movimentação. Em frente ao portão cinza, um homem estendido no chão, a morte proclamada por cinco tiros e alguns segundos. Pobre coitado, por pior que tenha sido - ou não. Expliquei mais uma vez ao meu filho a regra sobre o barulho de tiro. “Quando ouvir, deita no chão e espera”, disse. E espero eu que ele tenha aprendido. Espero, mais ainda, que desate os nós que venham a surgir ao longo da sua vida, para ter o coração sempre tranqüilo, em paz, tão tranqüilo como é agora, enquanto olha a cena da tragédia pela janela desse décimo quarto andar.
Crônica publicada no Correio Trespontano em 15/09/2007